Luciana Constantino | Agência FAPESP – A falta de conhecimento sobre os benefícios da genômica humana para a saúde pública e individual, somada à escassez de profissionais qualificados e ao baixo investimento, está entre os desafios que os países precisam superar para implementar políticas públicas equitativas na área.
Para enfrentar essas questões, é essencial lançar iniciativas que comuniquem de forma clara o potencial da genômica a diferentes públicos, envolvendo todos os setores interessados. Além disso, a implementação de ações baseadas em prioridades locais e nas melhores práticas internacionais também é um caminho a ser perseguido. Como resultado, espera-se ampliar o uso da genômica em pesquisas e na prática clínica, promovendo avanços na prevenção, no diagnóstico e tratamento de diversas doenças.
Todo esse panorama está descrito no primeiro artigo publicado pelo Grupo Consultivo Técnico sobre Genômica (TAG-G) da Organização Mundial da Saúde (OMS) na revista Nature Medicine.
Formado por especialistas internacionais, sob a presidência da neurocientista brasileira Iscia Lopes-Cendes, o grupo tem entre suas funções chamar a atenção para oportunidades e experiências existentes na área, fornecendo orientação técnica e recomendando atividades prioritárias para acelerar o acesso a essas tecnologias.
A genômica é o estudo do conjunto completo de genes (o genoma) dos organismos, como funcionam e como interagem entre si e com o ambiente. Com isso, é possível prevenir, diagnosticar e até personalizar o tratamento de doenças, desde aquelas consideradas raras até variados tipos de câncer. É um campo científico multidisciplinar, que oferece percepções sobre diversas áreas, como atendimento clínico, segurança alimentar e até controle de infecções.
“O grupo resolveu publicar o artigo em uma revista científica visando aumentar o conhecimento e ampliar o alcance do assunto e de nosso trabalho. Os reports da OMS são importantes, mas nem sempre atingem um grande número de interessados. Queremos levar essas informações a tomadores de decisão do mundo todo, à comunidade médica e científica. Buscamos listar desafios e colocar pontos propositivos que podem ser utilizados por governos, médicos, pesquisadores e até a sociedade para cobrar a implantação de políticas públicas”, conta Lopes-Cendes à Agência FAPESP.
Professora da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM-Unicamp), ela é também uma das principais cientistas do Instituto de Pesquisa sobre Neurociências e Neurotecnologia (BRAINN), um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) apoiado pela FAPESP, com sede na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
A ‘herança’
O DNA traz uma espécie de “manual de instruções” presente em cada célula do corpo, sendo responsável por armazenar e transmitir as informações genéticas herdadas dos pais. Influencia desde a cor dos olhos até o risco de desenvolver doenças ao longo da vida.
A partir da publicação na Nature, em 2001, da primeira versão do esboço do genoma humano – com uma sequência de mais de 3 bilhões de pares de bases – houve uma aceleração no desenvolvimento de ferramentas genômicas. Avanços e aperfeiçoamentos dessas tecnologias e de testes genéticos têm contribuído para a saúde individual e a criação de políticas públicas mais assertivas.
Esses testes são exames que analisam o DNA de uma pessoa para procurar mutações ou alterações que podem aumentar o risco de doenças e até mesmo causá-las. Fornecem informações importantes sobre as chances de o paciente desenvolver certas condições de saúde, como diabetes, doenças cardíacas ou autoimunes. Com isso, é possível adotar medidas de prevenção e tratamento direcionado.
Além disso, as análises de DNA oferecem dados importantes para sinalizar tendências de saúde pública, como maior propensão a certas doenças em determinada região, permitindo a criação de programas específicos para a área ou o desenvolvimento de projetos que atendam determinadas enfermidades.
Porém, o acesso a essas tecnologias ainda é limitado, com grandes diferenças entre os países e altos custos de pesquisa e implementação. No Brasil, os testes genéticos estão disponíveis na rede particular, e o Sistema Único de Saúde (SUS) vem, aos poucos, implantando algumas ações.
O Programa Nacional de Genômica e Saúde de Precisão (Genomas Brasil), criado em 2020, foi reformulado no ano passado com o objetivo de estabelecer as bases para o desenvolvimento da saúde pública de precisão. Em agosto, o Ministério da Saúde abriu uma chamada pública para linhas de pesquisa na área, com investimento previsto em R$ 100 milhões. .
Outra dificuldade é a falta de geneticistas – enquanto a OMS recomenda 1 para cada 100 mil habitantes, o Brasil tem 1 a cada 520 mil. Apesar de ter dobrado em uma década, o total de registros desse tipo de profissional é de apenas 407, segundo a publicação Demografia Médica no Brasil 2023.
“Há uma demanda muito grande por treinamento de profissionais específicos para a área. Por exemplo, se estamos fazendo testes genéticos, precisamos de aconselhadores genéticos, função que não deve depender apenas dos médicos geneticistas, que já são poucos. No Brasil e em vários países da América Latina, essa profissão nem sequer é regulamentada, apesar de termos alguns cursos de mestrado profissional”, afirma Lopes-Cendes. Nesse sentido, o artigo sugere o apoio à educação e ao treinamento de profissionais em genômica.
O grupo também defende no trabalho que os países adotem esforços de comunicação voltados a vários públicos – como governos, tomadores de decisão, financiadores e sociedade – para destacar o potencial da área e delinear as considerações relevantes para a saúde individual e pública. Esse esforço pode ser feito por meio de vídeos explicativos, pôsteres, folhetos e infográficos.
Os pesquisadores destacam ainda que, para construir evidências do valor econômico da adoção da genômica humana na assistência médica, estão sendo desenvolvidos cenários de investimento, levando em consideração doenças específicas da população e diversidade genética. Dependendo do contexto, os casos podem incluir triagem pré-natal ou neonatal direcionada a doenças como talassemia e outras hemoglobinopatias, testes para risco de câncer hereditário ou farmacogênicos para promover o melhor uso de terapêuticas e reduzir efeitos adversos.
A origem do TAG-G
O TAG-G foi criado em setembro de 2023 para fornecer à OMS consultoria técnica sobre genômica e apoiar no trabalho para acelerar o acesso ao conhecimento dessas tecnologias, especialmente em países de baixa e média renda. O mandato é de dois anos.
Em maio de 2024, a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) realizou uma reunião regional como um primeiro passo para promover a implementação da genômica na medicina clínica, na saúde pública e no fortalecimento da pesquisa nas Américas, com a participação de integrantes do TAG-G.
“Reuniões desse tipo são importantes no esforço de promover a colaboração entre países e regiões, que têm necessidades e demandas específicas. Temos um mandato no TAG-G por mais um ano, podendo ser prorrogado para o mesmo grupo de pesquisadores ou novos integrantes. Vamos continuar avançando na construção dessas diretrizes”, completa a presidente do TAG-G.
O artigo The WHO genomics program of work for equitable implementation of human genomics for global health pode ser lido em: https://www.nature.com/articles/s41591-024-03225-x#Bib1.